Estigma social da obesidade e desconhecimento do tratamento médico - Parte 1

Estigma social da obesidade e tratamento medicamentoso - Parte 1

Embora a obesidade seja causada por uma complexa mistura de fatores genéticos, ambientais e biológicos, é comum que pessoas com essa doença crônica sejam discriminadas, culpabilizadas e estereotipadas como preguiçosas e sem força de vontade. O estigma social da obesidade, que ocorre no trabalho, nos relacionamentos e no próprio consultório médico, gera sofrimento e afasta o indivíduo do tratamento. Inclusive porque o estigma se estende ao tratamento medicamentoso da obesidade, apesar de seus benefícios, o que gera desinformação em relação aos fármacos existentes. Para falar sobre o assunto, o Saúde Não Se Pesa convidou o médico endocrinologista Bruno Halpern, que é Doutor em Ciências pela USP, vice-presidente para a América Latina da Worl Obesity Federation e membro do Comitê de Cuidados Clínicos da instituição.

SNSP - Quais são os estigmas e preconceitos mais comuns em relação a pessoas com obesidade?

DR. BRUNO HALPERN - existem dois tipos de estigma. Um deles é o estigma externo, que é o preconceito da sociedade com quem tem obesidade. O maior preconceito, geralmente, é essa ideia de que a pessoa com obesidade é relaxada, preguiçosa, não tem força de vontade, não cuida de sua saúde, não tem responsabilidade, que bastava ela querer perder peso que conseguiria. E fazem piadas, comentários jocosos, que podem ser engraçados para quem conta, mas geram um grande sofrimento para quem os escuta.

Existe também o estigma interno, que ocorre por conta do estigma externo. É quando as próprias pessoas com obesidade, por escutarem ao longo da vida que são preguiçosas, que não têm força de vontade etc., acabam internalizando isso e acreditando isso de si mesmas – o que tem diversas consequências à saúde. Esse tipo de estigma traz maior sofrimento, acarreta maior ganho de peso e, assim, mais doenças associadas.

SNSP - Esse tipo de situação é mais frequente em quais ambientes?

DR. BRUNO HALPERN – ocorre em qualquer ambiente. Pessoas com obesidade podem ter mais dificuldades sociais e de relacionamento, mas o estigma também acontece em ambientes profissionais. Elas têm mais dificuldade de encontrar e manter empregos e podem, eventualmente, sofrer bullying no trabalho.

Outra questão importante é o estigma dentro do consultório médico. Muitas vezes, o médico também tem preconceito com o paciente com obesidade. Não há dúvidas que a obesidade está associada a diversos riscos de saúde, a questão é a forma como isso é discutido dentro do consultório. Uma coisa é o médico falar: “essas alterações podem ser relacionadas ao seu peso, seria importante você perder peso, vou te encaminhar para um tratamento”. Outra coisa muito diferente é o profissional dizer: “perde 20 kg e volta; você não teria nenhum desses problemas se perdesse peso; você precisa se cuidar; se você continuar assim vai ter um infarto” - com uma conversa um pouco terrorista.

Tem estudos que mostram que pessoas com obesidade são menos investigadas, porque o médico tende a atribuir qualquer sintoma ao excesso de peso, quando pode ser que exista um outro problema de saúde que precisa ser pesquisado. Então, esse estigma impacta na própria assistência médica de pessoas com obesidade.

SNSP - Crianças com obesidade também são afetadas pelos estigmas?

DR. BRUNO HALPERN - as crianças, muitas vezes, são as mais afetadas. Há estudos que mostram que ter obesidade é o fator mais associado a bullying e sofrimento social em escolas.

Claro, isso é reflexo de algo que está na sociedade como um todo. O bullying com a pessoa com obesidade é extremamente frequente e traz um sofrimento psíquico muito grande.

SNSP - Por que não é correto atribuir o excesso de peso exclusivamente à responsabilidade da pessoa?

DR. BRUNO HALPERN – temos que partir do princípio de que o ato de comer é o ponto final de uma série de cadeias fisiológicas. Então, a primeira questão é: os índices de obesidade cresceram nos últimos 50 anos em proporções galopantes e isso tem muito a ver com o ambiente em que a gente vive. Se você disser que o excesso de peso é responsabilidade do indivíduo, isso significaria dizer que, nos últimos 50 anos, a gente vive uma epidemia de irresponsabilidade, de pessoas que não têm preocupações com a própria saúde e antes tinham. Isso, obviamente, é um absurdo.

No entanto, até a década de 1960, havia pouca disponibilidade de alimentos, então, mesmo se a pessoa tivesse genes propensos para ter mais fome, menos saciedade e mais impulsos, ela não ganhava peso, porque não havia comida disponível. A partir da década de 1970, o mercado foi inundado de opções calóricas. Com a facilidade de alimentos ricos em calorias, ultraprocessados, estes indivíduos geneticamente suscetíveis passaram a ter muito mais dificuldade de evitar essa tendência natural de ganho de peso. Os índices de obesidade aumentaram tanto nos últimos anos, devido à combinação de genética e de um ambiente favorável para o ganho de peso.

Outra questão é que, depois que você desenvolve obesidade, pela razão que for, o corpo vai agir para que você não perca este peso. Assim, quando você começa a comer menos, o hipotálamo, que é a região do cérebro que controla a fome e a saciedade, manda um sinal de alerta e sua fome aumenta. Para cada quilo de peso que se perde, há uma tendência de aumento de fome de até 100 calorias. E esse mesmo hipotálamo também manda um sinal para que o gasto energético se reduza, então você começa a gastar menos calorias, mais ou menos 30 calorias por quilo.

Essa é uma das razões pelas quais as pessoas com obesidade não conseguem perder peso ou sustentar o peso perdido. O corpo age de tal forma que existe essa tendência de voltar ao maior peso por meio do aumento da fome e redução do gasto enérgico.

Comer é um ato biológico, a gente precisa comer para sobreviver. Ou seja, esse ato é controlado por áreas que não estão totalmente sobre a nossa consciência. A gente acha que o ato de comer, pôr na boca, é uma decisão consciente, mas a fome não é. Isso significa que, no longo prazo, a pessoa não vai conseguir passar por cima da fome.

Ninguém está acima do peso porque quer. Em média, pessoas com obesidade fazem seis tentativas sérias por ano de perder peso, mas não conseguem. Primeiro, por conta das causas que levaram a isso, a genética que existe por trás. E, segundo, por causa desses mecanismos biológicos que impedem a perda de peso.

Também devemos lembrar de outros fatores que podem levar ao ganho de peso, como alguns medicamentos psiquiátricos e outras situações biológicas, como parar de fumar. Existe toda uma discussão, por exemplo, se certas bactérias do intestino contribuem para o ganho de peso. Até a poluição atmosférica tem relação com ganho de peso, segundo alguns estudos. As causas da obesidade são muito complexas, existem milhões de fatores associados, que não estão totalmente sob o nosso comando.

SNSP – Quer dizer então que a herança genética influencia no desenvolvimento da obesidade?

DR. BRUNO HALPERN – muito. Existem estudos que mostram que as chances de um filho adotivo ter obesidade têm muito mais relação com o nível de obesidade dos pais biológicos do que com o dos pais adotivos. Também há estudos que mostram que irmãos gêmeos que foram criados em ambientes diferentes têm muito mais probabilidade de ter a mesma faixa de peso do que irmãos adotivos que vivem no mesmo ambiente. Esses são exemplos claros do peso da genética no desenvolvimento da obesidade.

Vale destacar que quanto mais precoce é a obesidade, maior a chance de ela ser genética, mas é também quando mais existe a culpabilização – nesse caso, dos pais. E os próprios pais se sentem culpados. Quando uma criança de um ou dois anos, por exemplo, tem obesidade, culpam os maus hábitos da família, mas, há uma grande probabilidade da obesidade estar vinculada a questões genéticas.

SNSP - O estigma social da obesidade pode dificultar o acesso a tratamentos adequados?

DR. BRUNO HALPERN – com certeza. De forma recorrente, a maneira como os médicos falam com pessoas com obesidade gera uma sensação de humilhação, o que faz com que elas deixem de procurar atendimento médico porque não querem passar por essas experiências. A obesidade está, sim, associada a riscos e exige tratamento. Mas, acolher o paciente, discutir as dificuldades dele, explicar a situação, oferecer tratamento é totalmente diferente de ter um tom acusatório, inquisitivo e de julgamento.

SNSP - Por que a maioria desses pacientes não recebe tratamento medicamentoso seguro e eficaz?

DR. BRUNO HALPERN – os medicamentos antiobesidade também sofrem estigma. Primeiro, porque a própria obesidade não é vista como doença, mas como estilo de vida, e sendo assim, não precisaria de medicamentos para tratá-la. No entanto, embora a obesidade esteja vinculada a questões comportamentais, ela não é um estilo de vida, é uma doença.

Além disso, no passado, tivemos tratamentos para obesidade perigosos, que foram proibidos porque causavam aumento de frequência cardíaca e pressão arterial, alguns deles até mesmo associados a infarto. Portanto, existe uma ideia arraigada de que tratamento para perda de peso é perigoso, faz mal, que se toma com objetivo mais estético do que de saúde. Felizmente, temos novos medicamentos não só mais seguros, como talvez, no futuro, se provem protetores de risco de infarto e doença cardiovascular.

Outra razão pela qual os medicamentos para obesidade são pouco utilizados é a ideia de que, quando a pessoa para de tomá-los, ela volta a engordar. Mas isso mostra que eles funcionam, porque enquanto estão sendo utilizados, fazem efeito. A gente não pode esquecer que a obesidade é uma doença crônica. Então, se você interrompe o tratamento, vai existir uma tendência de recuperação de peso natural, não por conta do tratamento, mas pela doença, que é crônica.

SNSP – Existem outros termos estigmatizantes relacionados à obesidade?

DR. BRUNO HALPERN – é importante evitar o uso do termo “obeso” e passar a usar “a pessoa com obesidade”. Isso porque o indivíduo não pode ser definido pela doença que possui – ele tem uma doença que se chama obesidade, não é doente, não é obeso. Pode parecer irrelevante, mas faz muita diferença.

SNSP – Que outras medidas são importantes para combater os estigmas da obesidade?

DR. BRUNO HALPERN – para combater o estigma interno, que são ideias negativas que a pessoa com obesidade tem de si mesma, é importante que os profissionais de saúde expliquem para os pacientes a biologia da obesidade, para que eles entendam que ela não ocorre por falta de força de vontade.

Mas, claro, a única forma de acabar com estigma interno é acabar com o estigma externo. E isso parte de políticas públicas, campanhas na mídia para explicar que a obesidade é uma doença crônica, que seu tratamento é difícil, focando mais nos benefícios da perda de peso do que nos males que o excesso de peso causa – pois o que move a mudança é o benefício da melhora. Também é necessária uma melhor formação dos médicos nas faculdades, incluindo a obesidade como disciplina obrigatória nas faculdades médicas, com muito mais carga horária do que tem hoje em dia.

SNSP - Quais prejuízos o estigma social da obesidade pode causar nas diversas fases da vida?

DR. BRUNO HALPERN – o estigma internalizado está associado, no longo prazo, a estresse e sofrimento psíquico, que por sua vez estão associados a ganho de peso, doenças cardiovasculares e doenças psiquiátricas, como transtornos ansiosos, depressão e eventualmente risco de suicídio. Há estudos que mostram que quem sofre mais com estigmas tem mais risco de infarto, diabetes e AVC.

Ao mesmo tempo, indivíduos que sofrem mais estigma por conta da obesidade vão menos ao médico, e mesmo quando vão, o profissional tende a atribuir qualquer sintoma ao excesso de peso. Assim, o estigma pode levar a um atraso no diagnóstico e no tratamento de eventuais doenças, tendo um impacto direto na saúde do indivíduo.

É importante, no entanto, tomarmos cuidado para não cairmos no espectro oposto. Existe hoje um movimento de body positivity (positividade corporal), que preza pela aceitação do corpo como ele é, o que é importante. Só que existem alguns radicalismos dentro desse movimento que afirmam que a obesidade não é uma doença e não está associada a maiores riscos de saúde e isso não é verdade. Precisamos achar o meio termo, isso é, acolher as pessoas com obesidade, entender que o objetivo do tratamento não é necessariamente fazê-las atingir o IMC normal e que perder 10% a 20% do peso já traz uma série de benefícios. Tudo isso sem cair no outro espectro de dizer que qualquer pessoa que falar que você tem que perder peso está sendo preconceituosa, estigmatizante, porque não é verdade.



Leia a segunda parte da entrevista com o Dr. Bruno Halpbern, onde ele explica questões sobre o tratamento da obesidade .

 

BR22OB00098 - Ago./2022

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