Leia a segunda parte da entrevista estigma social e tratamento da obesidade concedida ao Saúde Não Se Pesa pelo médico endocrinologista Bruno Halpern, que é Doutor em Ciências pela USP, vice-presidente para a América Latina da Worl Obesity Federation e membro do Comitê de Cuidados Clínicos da instituição.
SNSP - Qual é a importância do tratamento da obesidade?
DR. BRUNO HALPERN – o tratamento clínico da obesidade tem como objetivo reduzir as comorbidades e melhorar a qualidade de vida. Por exemplo, a perda de peso melhora muito o controle glicêmico (controle do açúcar no sangue) de indivíduos com diabetes, reduz a incidência de diabetes em indivíduos que tenham pré-diabetes, melhora triglicérides (um tipo de gordura presente no sangue), LDL (um tipo de proteína conhecida como “colesterol ruim”), que são fatores de risco cardiovascular. Também é possível citar melhora de dores articulares, sintomas depressivos, apneia obstrutiva do sono e gordura no fígado.
Também é possível melhorar qualidade de vida com tratamentos de obesidade de forma independente da perda de peso. A pessoa passa a entender melhor a biologia da obesidade e que ela não depende só da força de vontade, entende que perdas de peso menores já fazem bem para a saúde, passa a ter uma relação melhor com a comida e se sente menos culpada. Isso diminui o sofrimento psíquico.
SNSP - Por que que o apoio psicológico é importante no tratamento da obesidade?
DR. BRUNO HALPERN – o acompanhamento psicológico pode ajudar a diminuir o estigma interno, da pessoa achar que não vai conseguir perder peso, que se voltou a engordar é porque fracassou de novo. Inclusive, muita gente não busca tratamentos medicamentosos ou cirúrgicos porque considera que isso é quase uma falha de caráter. É como se elas estivessem buscando o caminho mais simples, tivessem fracassado. No entanto, se você tem uma doença crônica, você tem que usar os melhores meios disponíveis, inclusive médicos, para tratá-la. Então, o acompanhamento psíquico permite que a pessoa olhe com mais rigor para os tratamentos disponíveis, além de eventualmente garantir que ela consiga se manter no tratamento, entendendo que oscilações de peso no caminho são esperadas.
SNSP - Qual é a função dos medicamentos no tratamento da obesidade e como os diferentes tipos de medicamentos para obesidade agem no organismo?
DR. BRUNO HALPERN – a ideia do tratamento medicamentoso não é substituir dieta e exercícios, mas se adicionar a eles para torná-los mais efetivos no longo prazo. Hoje, no Brasil, temos quatro medicações aprovadas para a obesidade: a liraglutida, a sibutramina, o orlistate e a combinação de bupropiona com naltrexona, que já foi aprovada, mas ainda não está no mercado. Três delas, que são a liraglutida, a sibutramina e a bupropiona com naltrexona, agem fundamentalmente na ingesta calórica, isso é, fazem com que as pessoas comam menos calorias.
A liraglutida, que é a medicação padrão-ouro (medicação que serve como padrão de excelência), leva a uma perda de peso maior e tem um grau de segurança mais bem estabelecido. Ela faz com que a pessoa coma pouco e tenha uma saciedade mais precoce, facilitando a restrição calórica.
A sibutramina também age na saciedade, com um mecanismo um pouco diferente. A liraglutida e a bupropiona com naltrexona também agem um pouco na fome emocional, que é uma fome hedônica, do comer pelo prazer. Não é que você reduz o prazer de comer, mas você tem menos aquele ímpeto de comer sem necessariamente estar com fome, aquele impulso alimentar que muita gente tem.
O orlistate, que é o único fora dessa lista, faz com que a gordura ingerida não seja totalmente absorvida, 30% dela sai pelas fezes. Não por acaso, esse é o medicamento menos eficaz, porque não age muito nessa fisiologia de fome, saciedade, é um efeito mais absortivo. Com isso, o efeito real na perda de peso é relativamente modesto, embora seja um medicamento que ajude em outros aspectos, como melhora do colesterol e da glicemia.
SNSP - O uso de medicamento para tratar a obesidade também é um estigma?
DR. BRUNO HALPERN – existe sim esse estigma, inclusive por parte de médicos. Com isso, muita gente acha que a medicação é perigosa e faz uso dela apenas por curto prazo, aí volta a ganhar peso e culpa o remédio. Claro, todo remédio tem indicação e contraindicação e tem gente que, mesmo com indicação, vai ter efeitos colaterais e não vai tolerar. Por isso, eles devem ser usados somente sob prescrição e orientação médica. Nenhuma medicação é um cura-tudo, mas, com boa orientação médica, são muito eficazes para a perda de peso.
SNSP - Quando o tratamento medicamentoso está indicado?
DR. BRUNO HALPERN – as indicações dependem um pouco da bula de cada medicação e do que dizem as diretrizes de cada país. Geralmente, quem tem um IMC acima de 30 tem indicação de tratamento medicamentoso, ou IMC acima de 25 ou 27, dependendo do caso. O índice de massa corporal (IMC) é o resultado da divisão do pela a altura ao quadrado, com alguma doença associada. Então, a pessoa que tiver sobrepeso com alguma doença associada também poderia utilizar medicamento.
Isso está muito longe de significar que todas as pessoas com obesidade vão tomar medicação.
Tem estudos que mostram que só 10% dos indivíduos sob uma intervenção de estilo de vida intensiva atingem mais do que 10% de perda de peso. Não que todos esses outros 90% vão ter resultado brilhante com medicamentos, mas se você adiciona medicamentos, você consegue resultado para mais pessoas. Quanto mais opções a gente tiver, maior a chance de a gente encontrar o melhor tratamento para aquele indivíduo específico.
SNSP – Quais são os perigos da automedicação?
DR. BRUNO HALPERN – é importante diferenciar um medicamento para obesidade aprovado e prescrito por um bom médico do que existe muito por aí que é automedicação com coisas que a gente não tem a mínima ideia do que seja. Existem substâncias sendo vendidas na internet, muitas vezes contendo anfetaminas ou efedrina, que é um remédio que já foi proibido no mundo inteiro por aumentar a frequência cardíaca e a pressão. São inúmeros os perigos de se utilizar produtos não licenciados, que podem ser comprados sem receita médica, incluindo risco de infarto, doença vascular, quadros depressivos e ansiosos, entre outros.
Mesmo os medicamentos aprovados têm indicações e contraindicações, além de dosagens específicas, e não devem ser utilizados por conta própria. A prescrição e o acompanhamento médico são essenciais para garantir a segurança e a eficácia do medicamento.
SNSP - O medicamento para obesidade pode ser interrompido a qualquer momento? Deve ou pode ser usado por quanto tempo?
DR. BRUNO HALPERN – a obesidade é uma doença crônica, assim como hipertensão e diabetes. Portanto, o tratamento deve ser crônico também. A ideia é ter tratamentos que sejam suficientemente seguros para serem usados em longo prazo. Isso não significa que você se torna refém do medicamento. Há situações em que é possível reduzir ou eventualmente tirar a medicação, como no caso de pessoas que queiram aumentar exercício, fazer alguma outra mudança de alimentação. A medicação é apenas parte do tratamento e, na maioria das vezes, a ideia do tratamento medicamentoso é ser de longo prazo para controlar a doença.
Isso não significa que se o indivíduo tiver um efeito colateral ou alguma outra questão ele não possa interromper a medicação ou que ele vai ter um ganho de peso maior do que teria se nunca tivesse usado o remédio. Ele vai ter uma tendência de recuperar o peso porque não está tratando. Aí, será necessário buscar outras estratégias.
SNSP – Existem pessoas que terão que usar o medicamento para obesidade por toda a vida, como acontece com outras doenças crônicas?
DR. BRUNO HALPERN – exatamente. Esse é um paradigma importante de ser mudado. Temos hoje medicamentos que são mais seguros e trazem resultados melhores, além de eventualmente reduzirem o risco de infarto e doença cardiovascular. Eles vão ser usados a longo prazo, se bem tolerados, claro. Você não vai usar pelo resto da vida um remédio que faça você passar mal. Se você não tolera um medicamento, a gente tem que buscar outras estratégias.
SNSP - Por que é tão comum o "efeito sanfona" quando falamos de tratamento medicamentoso?
DR. BRUNO HALPERN – porque, em geral, ele é visto como um tratamento de curto prazo. É aquela ideia de que se faz tratamento para emagrecer, não para obesidade. No momento em que se interrompe o medicamento, toda aquela biologia que já mencionei de aumento de fome, redução de gasto energético, se coloca à frente. É como puxar um elástico: se você tira a força, ele volta ao ponto de origem.
SNSP - Que outras práticas são importantes para que o tratamento medicamentoso seja bem-sucedido?
DR. BRUNO HALPERN – em primeiro lugar, o acompanhamento médico, para que o profissional monitore se o tratamento está funcionando ou não, para ajustar a dose e combinar medicações, se for o caso, e para conversar com o paciente sobre as expectativas do tratamento. Outro fator que ajuda nos resultados do tratamento é a multidisciplinaridade, que envolve:
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Acompanhamento com nutricionista - é fundamental para melhorar a qualidade geral da alimentação e otimizar os resultados; | ||
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Fazer exercícios físicos - é extremamente importante para manter o peso perdido. Menos de 10% das pessoas bem-sucedidas em manter o peso perdido a longo prazo não são ativas. | ||
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Acompanhamento psicológico - nem todo paciente com obesidade precisa de acompanhamento psicológico. É indicado, principalmente para aqueles que sofrem mais com o estigma interno, que têm compulsão alimentar ou outras questões. |
SNSP - Como o médico chega ao tratamento medicamentoso ideal para um paciente?
DR. BRUNO HALPERN – a partir da experiência, de conhecer as opções de tratamento e seguir as diretrizes. Algumas medicações, por exemplo, não podem ser usadas por pacientes com doença psiquiátrica, outras são contraindicadas para quem tem doença cardiovascular etc.
SNSP – Existem medicamentos que funcionam muito bem para um paciente e não funcionam para outros?
DR. BRUNO HALPERN – exatamente. Mesmo que um medicamento seja muito bom, ele pode não funcionar para todo mundo. Ter mais opções terapêuticas permite encontrar o melhor tratamento para aquele indivíduo específico.
SNSP - Existem situações em que é necessário associar diferentes medicamentos para o tratamento da obesidade?
DR. BRUNO HALPERN – sim. Eu falei, por exemplo, que um dos medicamentos aprovados no Brasil para a obesidade é a combinação de bupropiona e naltrexona. Eles só funcionam juntos porque, se utilizados separadamente, existem mecanismos de defesa do organismo que impedem o efeito da perda de peso. Ao combinar ambos, você burla esse sistema de defesa. Embora existam poucos estudos com combinação de medicamentos para obesidade, é algo que podemos fazer na prática clínica.
SNSP - Qual a importância da parceria entre médico e paciente para o sucesso do tratamento medicamentoso?
DR. BRUNO HALPERN – é importante deixar claro, desde o início, que é uma corresponsabilidade. Às vezes, o paciente não atinge bons resultados com o tratamento e se sente culpado, acha que não fez a parte dele, tem medo de voltar ao médico porque acha que o médico vai dar bronca. Mas, se um tratamento vai mal, o médico tem que reanalisar e entender também o que ele pode fazer para que aquele tratamento seja melhor.
A consulta médica é um momento de responsabilidade, que é prestação de contas, em que o paciente está ali para mostrar para o médico o resultado, discutir com ele suas opções etc. E o médico deve acolher e agir nas dificuldades. Isso vale para todas as doenças.
A parceria entre o médico e o
paciente é fundamental para a adesão ao tratamento e,
consequentemente, para o controle efetivo da obesidade.
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Leia a primeira parte da
entrevista com o Dr. Bruno Halpbern, onde ele explica questões
sobre o estigma
social da obesidade .
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BR22OB00098 - Ago./2022