A obesidade está associada a uma série de problemas de saúde. Diabetes e doenças cardiovasculares estão entre os mais conhecidos, mas existem outros, como aumento do risco de câncer de mama, de infertilidade e de complicações na gestação. Para falar sobre o assunto, o Saúde Não Se Pesa convidou o médico ginecologista Dr. Gustavo A. Rosa Maciel, professor de ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador do setor de ginecologia endócrina e reprodutiva do Hospital das Clínicas da FMUSP.
SNSP - Qual a prevalência de infertilidade em mulheres que têm obesidade?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL - o primeiro dado importante é que a infertilidade atinge cerca de 15% da população geral. Esse dado veio de estudos que tentaram estimar, nessa população, a chance de gravidez espontânea em um ciclo natural - em um mês, digamos. Eles concluíram que apenas 15% dos casais conseguiam engravidar nesse tempo. Só que essa era uma taxa cumulativa, de maneira que, depois de um ano de tentativas, 85% desses casais acabaram engravidando.
A obesidade influencia vários aspectos da fertilidade de homens e mulheres. Por exemplo, faz com que a mulher ovule menos, que o homem tenha uma qualidade espermática pior, que a chance de implantação desse bebê formado após a fecundação seja menor. Quanto maior o grau de obesidade, maior o impacto na fertilidade.
SNSP - Por quais mecanismos a obesidade pode interferir na fertilidade da mulher?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL - os mecanismos são múltiplos. Na mulher, a obesidade pode interferir na fertilidade devido aos seguintes aspectos principais:
Produção inadequada de hormônios - quando há excesso de tecido adiposo no corpo, a mulher passa a ter um distúrbio na produção hormonal. Sua capacidade de ovular todo mês é reduzida e ela apresenta excesso de hormônio masculino, levando a um desequilíbrio hormonal em termos de produção de hormônio masculino e feminino.
Problemas para ovular - a mulher com obesidade também tem dificuldades para ovular adequadamente.
Inflamação de baixo grau – pessoas com obesidade têm o organismo levemente inflamado. Existem alguns mecanismos para tentar combater essa inflamação de baixo grau. Por exemplo, com o aumento da produção de células sanguíneas chamadas leucócitos, que acabam se infiltrando nessa região do sistema reprodutivo.
Ambiente hostil ao óvulo - o excesso de gordura também faz com que o ambiente onde fica o óvulo se torne hostil. Então, a qualidade do óvulo de quem está acima do peso é pior em relação a quem tem peso normal.
SNSP - Quais as abordagens de tratamento para fertilidade em mulheres com obesidade?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL - o tratamento inicial de todas as pacientes que estão acima do peso, seja com sobrepeso ou obesidade, é uma mudança de estilo de vida. A primeira coisa que temos que orientar às pacientes, e à população geral também, é observar com cuidado como se alimentar. A gente sabe que o excesso de peso está ligado não só à infertilidade, mas a uma série de problemas de saúde, de curto e longo prazo.
Então, é importante que, desde muito cedo, as pessoas sejam orientadas sobre o que é uma alimentação saudável e como elas podem fazer melhores escolhas. O “Guia Alimentar para a População Brasileira”, uma ferramenta gratuita do Ministério da Saúde, é considerado um dos melhores e mais modernos guias alimentares do mundo.
Ele é baseado em algumas categorias de alimentos: in natura, processados e ultraprocessados. Em uma abordagem bem simples, ele fala que todo alimento que a sua bisavó não reconhecia como comida, muito provavelmente não vai te fazer bem.
Uma segunda questão é a movimentação corporal. É muito importante se movimentar regularmente, ter um estilo de vida ativo. Sabemos que a correria do dia a dia dificulta a prática de exercícios. Por outro lado, se não tivermos tempo para cuidar de nós mesmos, não vamos sequer conseguir fazer o que precisamos – trabalhar, cuidar dos nossos filhos, fazer nossas atividades etc.
Em alguns casos, além da mudança de estilo de vida, também podemos lançar mão de algumas medicações. O uso de remédio para tratar a obesidade é considerado a partir do momento em que a pessoa está com o IMC de sobrepeso e tem alguma condição médica associada, como hipertensão e pré-diabetes. Atualmente, no Brasil, existem três categorias de medicação aprovadas para o tratamento da obesidade:
✓ Sibutramina, que age no núcleo da fome;
✓ Orlistate, que causa diminuição da absorção de gordura
pelo intestino;
✓ Agonista de GLP-1 (nesta categoria está a liraglutida), substância que se liga ao receptor de GLP-1, agindo na saciedade, fome e utilização de energia pelo organismo.
Dentre as opções de tratamento da obesidade também é possível citar a cirurgia bariátrica e outras intervenções cirúrgicas.
SNSP - A obesidade pode causar complicações para a saúde da mãe e da criança caso a mulher engravide?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL – a obesidade já causa problemas quando a pessoa tenta engravidar, como mencionei anteriormente. Agora, se eventualmente essa mulher engravida, existem vários outros riscos ligados à gestação. Por isso, o ideal é que ela melhore seu peso antes de engravidar.
SNSP - Quais tratamentos para obesidade podem ser feitos durante a gravidez?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL – durante a gravidez, ficamos muito limitados para tratar a obesidade com medicação, pois isso afetará tanto a mãe quanto o bebê. Obviamente, se a paciente desenvolver, por exemplo, um quadro de diabete gestacional, uma medicação chamada insulina é necessária para tratar especificamente o diabete.
Na maioria das vezes, indicamos uma dieta mais restritiva para essa paciente, para tentar minimizar os efeitos da obesidade na gravidez. Mas temos que levar em conta que se você “aperta” demais o tratamento de um organismo que estava acostumado com excesso de energia, ele poderá responder de tal forma que venha a prejudicar o desenvolvimento do bebê.
Isso porque o organismo, a partir de um determinado momento de ganho de peso, se acostuma com um certo ambiente e começa a sabotar tentativas de emagrecer. Assim, quando a pessoa começa a emagrecer, uma parte do cérebro, chamada hipotálamo, sinaliza que está faltando comida e que é necessário comer mais. A nossa grande luta é tentar evitar que a pessoa necessite de grandes perdas de peso, porque precisar emagrecer muito é bem mais complexo e com resultados muito piores do que precisar emagrecer poucos quilos.
SNSP - Pacientes que foram submetidas a cirurgia bariátrica podem engravidar, há riscos?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL – em relação à gestação, recomendamos que a mulher que passou por cirurgia bariátrica não engravide durante um ano, pelo menos. Primeiro, porque a gravidez causa uma série de alterações corporais que faz com que ela ganhe peso e perca parte desse tratamento. Para se ter uma ideia, a média de uma mulher saudável é um ganho aproximado de 8 kg a 10 kg no final da gestação.
Outra questão é que a capacidade que o organismo dessa mulher tem de absorver a comida para nutrir o feto estará diminuída, então ela precisará repor vitaminas e outros nutrientes em uma intensidade maior. Será preciso um cuidado adequado para essa gestante, principalmente com relação ao balanço energético e ao balanço nutricional. Logo, essa paciente, com certeza, entrará em um protocolo de cuidados de gravidez de alto risco, classificação de gestantes que exigem um cuidado especial.
SNSP - A obesidade pode aumentar o risco de câncer de mama?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL – essa estatística varia muito dependendo da população, da presença de comorbidades, do grau de obesidade etc. Diversos estudos mostram que pessoas com obesidade têm, pelo menos, uma vez e meia mais chance de ter câncer de mama.
A obesidade é um fator de risco para vários tipos de câncer, porque a maioria dos processos que acontecem dentro da célula dependem muito de gordura, e quando essa pessoa tem excesso de gordura no corpo, esses processos ficam “acelerados”. Dessa forma, o processo de proliferação celular é afetado, assim como a capacidade do organismo de lidar com células que não estão bem, chamado apoptose, que é um processo de defesa do organismo para não deixar a pessoa ter câncer.
SNSP - A obesidade pode dificultar o diagnóstico de câncer de mama?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL – sim, o excesso de gordura na região das mamas pode aumentar as chances de o médico deixar passar algum sinal suspeito durante o exame clínico. Também há uma maior dificuldade para fazer ultrassom em uma mama muito grande. A questão com a mamografia é que, habitualmente, só é indicada a partir dos 40 anos. Todos esses aspectos contam para que o câncer seja diagnosticado um pouco mais tardiamente nessas pacientes.
Outro meio importante para detectar o câncer de mama é fazer o autoexame uma vez por mês, principalmente depois do período menstrual. Ele permite que a mulher conheça a própria mama, de maneira que se eventualmente aparecer alguma coisa diferente ali, ela rapidamente vai procurar ajuda médica. Para se ter uma ideia, 80% dos nódulos de mama são achados pelas próprias mulheres. Isso não exclui a necessidade de ir ao médico para que o profissional examine as mamas. Mas isso é uma vez por ano. Como eu digo a minhas pacientes: você está com você todo dia.
SNSP - É possível manter o tratamento da obesidade junto ao tratamento do câncer de mama?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL – é importante que as mulheres que estão em tratamento de câncer de mama se engajem, de alguma maneira, em tratamentos para manter o peso dentro da faixa da normalidade. O exercício físico libera sustâncias no organismo, entre elas a endorfina, que faz com que a pessoa melhore seu astral, tenha força para superar todo o processo de tratamento de câncer de mama, que é difícil. O controle do peso também tem relação com a autoestima. É importante que a mulher que está enfrentando um câncer de mama invista no seu bem-estar e em seu corpo, porque é sabido que pessoas com depressão e com baixa autoestima têm uma resposta pior aos tratamentos de câncer em geral.
Eventualmente, o câncer e a obesidade são tratados simultaneamente, embora a prioridade naquele momento seja combater o câncer. Mas sempre adotamos medidas para tentar fazer com que essa paciente perca um pouco de peso, faça atividade física etc.
SNSP - O tratamento do câncer de mama pode interferir na fertilidade?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL - até alguns anos atrás, o diagnóstico de câncer de mama em pacientes com menos de 40 anos era quase como um decreto de que elas não poderiam mais ter filhos. Isso porque boa parte dos tratamentos para câncer de mama, principalmente a quimioterapia, pode comprometer, sim, a fertilidade. Então, alguns anos atrás, a opção era tentar fazer um bloqueio hormonal antes do tratamento para diminuir o dano que a quimioterapia iria provocar no ovário. Atualmente, existem técnicas de preservação de fertilidade que mudaram totalmente esse cenário.
As técnicas de congelamento de óvulos, por exemplo, evoluíram de tal maneira que se consegue rapidamente fazer um tratamento, que dura de 8 a 15 dias, para recuperar alguns óvulos dessa paciente e deixá-los guardados, congelados. Essa possibilidade muda completamente a chance de ela ter filho no futuro.
Então, uma vez que a paciente é diagnosticada com câncer de mama em idade reprodutiva, o oncologista e a equipe de mastologia podem acionar imediatamente uma equipe de reprodução humana para fazer um tratamento curto a fim de estimular e, na sequência, congelar seus óvulos. Isso é cada vez mais comum. Principalmente na saúde privada, é impensável tratar uma paciente de câncer de mama, ou qualquer tipo de câncer, e não oferecer a ela a possibilidade de fazer a preservação de fertilidade.
Também devido ao aumento das modalidades de tratamento do câncer, a quimioterapia não é mais aquele monstro que costumava ser. Antigamente, ela só era usada em pacientes com câncer muito avançado, de pior prognóstico. Hoje, pode ser usada de vários modos para melhorar o resultado do tratamento.
É feita uma análise detalhada do tipo molecular de tumor que essa paciente tem. Em alguns casos, a quimioterapia é indicada antes da cirurgia (quimioterapia neoadjuvante), a fim de tentar diminuir bastante o tumor para facilitar a cirurgia e melhorar as chances reais de cura. Em outros casos, a gente faz o contrário, opera e complementa com quimio ou radioterapia.
SNSP - O senhor gostaria de deixar uma mensagem final?
DR. GUSTAVO A. ROSA MACIEL – precisamos ter um olhar de cuidado com a obesidade, entender que ela é um problema sério de saúde pública no mundo. Vivemos em um mundo obesogênico, com oferta de comida o tempo inteiro. Então, é preciso haver uma conscientização a respeito de alimentação, atividade física, e falar disso com os filhos, alunos, amigos, com todo mundo, fazer com que esse seja um assunto do dia a dia.
BR22OB00167 - Dez./2022